quinta-feira, 11 de novembro de 2010

Sobre ler, navegar e interagir

Marcia Stein

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"O que acontece dentro de nós quando nos defrontamos com um texto? O que é, na verdade, o ato que chamamos de ler?” (Manguel,1997)

Gosto de pensar a leitura como uma situação de comunicação. Uma situação em que autor(es), leitor(es) e contexto(s) interagem, não só em torno do objeto livro, mas em torno de todo um sistema de hábitos, ideias, valores e sentimentos que contornam a prática da leitura - bem como toda prática comunicativa.

Seja qual for o ambiente de interação, ler e escrever são processos que pressupõem a comunicação, na medida em que pressupõem um sistema que conecta indivíduos em torno da circulação de ideias e informações que provocam movimento, deslocam as pessoas do lugar onde estavam em direção a outros lugares, mudam as coisas, mudam as pessoas.

Palavras, imagens e sons veiculam ideias, valores, sentimentos, sensações, estejam eles nas páginas dos livros, dos jornais, das revistas ou nas telas da TV, das salas de cinema, dos computadores. E para aprender a ler e escrever, dizer e mostrar, ver e ouvir, ou seja, fazer uso das linguagens que permitem saber do mundo, falar do mundo e falar para o mundo, é preciso apropriar-se destes códigos, de todos eles. Desde o texto escrito, base de todas as linguagens, até a sintaxe do código audiovisual, que envolve textos, sons e imagens que produzem sentidos, é preciso desenvolver campos de interfaces, de conexões significativas entre sujeitos e linguagens.

Penso na epistemologia de Lévy (1993), que evoca uma Ecologia do Conhecimento, segundo a qual não há sentido em pensar na oposição entre espírito e matéria, sujeito e objeto, homem e técnica, indivíduo e sociedade. Para o autor, é preciso que "essas oposições grosseiras entre essências pretensamente universais sejam substituídas por análises moleculares e singulares, em termos de redes de interfaces." O que torna particularmente relevantes as reflexões de Lévy é que elas nos permitem focar as articulações entre pensamento e linguagem, entre informação e ambiente, entre as ideias e o meios que as veiculam.

No caso das atuais discussões em torno das relações entre livros e outros suportes, como TV e Internet, parece-me fundamental começar pensando sobre a indissociável relação entre a história da leitura e a história dos meios de comunicação. Das inscrições nas cavernas e dos papiros e pergaminhos aos livros artesanais, do advento da imprensa até a editoração eletrônica, das bibliotecas medievais às bibliotecas virtuais, a história das ideias vem sendo sustentada e estruturada pela história dos veículos, que, mais do que apenas darem suporte aos mais variados conteúdos, fazem parte deles, influenciando diretamente os modos como as pessoas se apropriam dos mesmos. Ou seja, ler um texto num livro impresso é diferente de lê-lo num site da Internet em vários sentidos, que vão do formato e dos modos de leitura, até os hábitos envolvidos em cada uma das situações (horário, ambiente, postura corporal, representações sociais etc.).

Portanto, quando a ideia é pensar sobre as relações entre leitura, escrita e meios de comunicação, mais importante do que discutirmos se a TV e o computador vieram para substituir o livro é identificarmos cada um destes suportes, com suas especificidades, não como recursos excludentes entre si, mas como recursos complementares, como elementos que compõem as redes de interfaces propostas por Lévy. E ainda mais importante é lembrar que, seja o acesso à informação feito via livro, Internet, TV ou rádio, é preciso cuidar para que ele seja responsável, ético, criterioso.

E como é que se cuida disso? Assumindo responsabilidades na formação de cidadãos qualificados para usar com autonomia as ferramentas tecnológicas disponíveis para buscar informação e converter informação em conhecimento. Afinal, para navegar sem perder o rumo nas páginas de um livro ou nos labirintos sem fim da Internet e do controle remoto, é preciso lançar mão do faro do investigador, da metodologia do pesquisador, da curiosidade do aprendiz, da imaginação e da sensibilidade do artista... É preciso formar nas escolas cidadãos prontos a interagir criticamente com os múltiplos modos de leitura e escrita que o mundo de hoje oferece. E tal formação depende diretamente das oportunidades de exercitar todos aqueles potenciais necessários ao bom navegador, que é também o bom leitor, o bom autor...

Livros de diferentes gêneros, roteiros de filmes, matérias de jornais, conteúdo de sites ou games devem ser discutidos em nossas salas de aula, devem inspirar atividades e projetos pedagógicos. Porque é nas salas de aula, afinal, que devemos formar jovens habilitados a construir seus saberes, articulando informações encontradas em livros, arquivos, filmes e em outras fontes, aptos a construir um sentido próprio para o conjunto de informações obtidas, não conformados com o autoritarismo das versões únicas, com a superficialidade das respostas prontas. Cultivar o questionamento, a curiosidade, a dúvida, o espírito investigativo, formar incansáveis aventureiros em busca do conhecimento, esta é a missão do educador comprometido com a formação para a cidadania.

É nesse sentido que Silva (2000) lembra que é na atitude dos educadores, mais que na estrutura tecnológica, que se deve buscar basear a perspectiva de uma prática pedagógica que prepare para a interatividade: "Investir em aprendizagem interativa não significa de imediato equipar a sala de aula com computadores ligados à Internet. O essencial não é a tecnologia, mas um novo estilo de pedagogia baseado na participação, cooperação e multiplicidade de conexões entre os atores envolvidos no processo de construção do conhecimento e da própria comunicação.”

Para todos nós, educadores, este é um chamado à responsabilidade, um lembrete de que a qualidade do uso que fazemos das informações não é determinada pela dimensão tecnológica, e sim pela dimensão humana. As novas tecnologias de comunicação ampliaram as possibilidades de acesso à informação, revolucionaram hábitos, impuseram novas reflexões e debates, mas da mesma forma que já ocorrera com relação a outras descobertas revolucionárias, o compromisso com a qualidade das ideias e opiniões que divulgamos, através de qualquer que seja o canal, continua sendo o mais importante.

Este texto foi publicado originalmente na FOLHA PROLER, publicação do Programa Nacional de Incentivo à Leitura, da Fundação Biblioteca Nacional (MINC), em setembro de 2000.


Referências bibliográficas:

MANGUEL, Alberto. Uma história da leitura, Cia das Letras, São Paulo, 1997.
LÉVY, Pierre. As tecnologias da inteligência, 34 Letras, São Paulo, 1993.

SILVA, Marco. A sala de aula interativa, Quartet, Rio de Janeiro, 2000.
Desembargador. Conectado com o futuro.

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